Educação accionária

Manifesto plural e não democrático pela acção da/na educação.

2.3.04

45,5 % ou a teoria da conspiração de um agente de seguros

Volto agora do meu café nocturno e penso se o meu horário não está feito na medida exacta de um esgar castanho, de um beijo roubado ao fumo, de uma tentativa em mudar hábitos - ja doem os ouvidos em adormecer a ouvir Tindersticks -, no decalque de outras vivências... na espera de ouvir o sussurrar de uma 1400.
Mas volto sempre. Desta vez, porém, volto comovido. Sim, é verdade. Comovido e orgulhoso pelo país que somos. Em tantas leituras, chego-me a esta, atrasada, onde se dá conta da percentagem de 45,5% de abandono escolar; suspiro e aconchego-me neste frio inominável. Mas, claro, o que me faz dormir sossegadinho é mesmo a taxa imposta pelo inanarrável governo de 40 mil desempregados na classe docente. Fico mesmo emocionado e excitado. Obviamente, o número é exagerado, interesses mesquinhos dos sindicatos, é o que é.
Eu sei que estou a ser lamechas, não é meu timbre, mas ando em tanto contentamento que não escondo estes números mágicos, estes departamentos minesteriais bestiais, estes sindicatos geniais e uma classe de créditos e novelas hercúlea. É um contentamento muito contente!
Andava eu nisto, quando encontro um agente de seguros. Olhem, desprezou-me no meu contentamento e, seco, bruto (nem me pagou o café...), disparou: "eu quero la saber do desemprego dos professores! Já viu se os seus colegas viessem para a reforma que a Segurança Social entrava em banca-rota? Sabe de quem é a culpa? Dos socialistas! Que o Mário Soares e o Ferro Rodrigues deram pensões a quem nunca descontou nada...!"
Eu já suspeitava, mas contra-argumentei, perguntando se não seria legítimo, depois de se ter estudado com proveito numa faculdade, esperar, já não digo emprego, mas um trabalho... se não seria importante, a bem da nação, permitir que uma geração nova, com força na verga, impulsionasse definitiva e competentemente uma geração de adolescentes rumo ao futuro, se não seria óptimo que fosse ocupando as vagas de egrégios colegas (que o governo não deixa virem para a reforma), se não seria importante haver um instituto que fizesse a acreditação de docentes (há tantos parolos no ensino! eu até tive três padres a português e tudo...!), se não seria, enfim, importante cortar com o estigma do 25 de Abril e fazer o país...longe dos discursos dos "saudosistas do passado" (que até nem falar sabem, como se vê)... a tudo isto e muito mais a resposta: "a culpa é do Mário Soares". Pronto.
E a educação para a cidadania? E a educação artística? E a educação estética? E a educação definitivamente afastada do caminho político? E a leitura? E a escrita? E o teatro, e o cinema e a ...criação ab ovo? A culpa é do Mário Soares. Pois claro.
Concorda comigo quando digo que ao governo não interessa formar cidadãos cultos? Que ao governo interessa manter docentes bi-empregados, nas escolas e nos colégios privados, sem dar oportunidade aos mais novos? Concorda comigo quando digo que ao governo, a este, ao anterior, e ao posterior, interessa manter uma população embrutecida que aplauda os imbecis chamados Fernandos Rocha, porque há a preservar interesses corporativos - sejam eles quais forem? Concorda comigo quando há interesse em manter uma classe ensandecida, porque não estabilizada? - "Concordo, e a culpa é do..."
E que tal não haver culpas - que país miserável! - e fazer tudo de novo?
45,5% de abando escolar? Milhares de jovens docentes desempregados? Alguém se convence que é por haver menos alunos? - é verdade que os há. Se ao 3º ciclo se reconhece uma pobreza franciscana no que concerne a exigência e descernimento na atribuição de níveis por parte dos professores, quem, num país que se quer desenvolvido, pode afirmar que a escolaridade obrigatória é suficiente e competente? Ninguém, e a culpa...
Já nem me pronuncio sobre o excesso de ramos educativos abertos nas faculdades - faz de conta que a estatística não existe -, sob o pretexto da livre e voluntária escolha dos seus pagantes; há tantos assistentes, e fracotes, na maioria das vezes, a pagar ao fim do mês!
A culpa...