Educação accionária

Manifesto plural e não democrático pela acção da/na educação.

2.10.05

Sobre a Cultura Norte-Americana, por Jorge de Sena

Vem este pequeno excerto, retirado de um artigo mais longo e mais abrangente, a propósito do que pelos blogs se escreveu sobre os Estados-Unidos e seu sistema político, aquando da tragédia de Nova Orleães. A propósito, porque das dezenas de posts lidos, a todos faltou destreza mental para redigir um que fosse, concomitantemente, abrangente na sua dimensão historicista e influência mundial. O carrefour multi-cultural e confessional esteve também alheio.
O que se leu muito, sim, foram opiniões alheias de sentido crítico e honestidade mental, devido, sobretudo e primeiro, a uma carta de princípios, a um determinado livro de estilo, que certos blogs teimam em ter e manter, implícita ou explicitamente, quando, na realidade, são apenas teorias avulsas, do género prêt-à-porter. Nada de substancial, importante e pertinente, portanto.
Este pequeno excerto serve apenas para aguçar o apetite; creio que, mesmo se redigido em 1968, há 37 anos, se mantém actual e aguçado. Para além disso, tem a virtude maior de contemplar a mais-valia do sistema universitário americano, por contraste com outros países. O Mito também passa pela literatura e pela arte da época. Vale a pena ler e reflectir.
Depois, dever-se-á ler o Baudolino de Umberto Eco e o cerco ficará completo.


(...) A América foi um mito criado pelas frustrações do liberalismo europeu, muito mais do que pelos próprios Founding Fathers, com a enorme importância que tiveram em diversos aspectos desse liberalismo. Antes disso, era a vasta expansão de um Novo Mundo - a visão do Paraíso. Depois disso, foi a realização pessoal, do triunfo pelos próprios méritos. E agora, é o Império Romano (sob a égide de cujas origens numa República Aristocrática e Senatorial os fundadores da Independência norte-americana a si mesmos se viram e talharam no momento culminante do seu poderio, que foi também o início da sua decadência. Mas estas comparações à Spengler ou à Toynbee não devemos nunca levá-las muito longe, sobretudo hoje, quando o mundo moderno na sua vasta e complexa interdependência (e as interdependências que a História e a sua Filosofia longamente não viram no passado existiram, e não é culpa delas a ignorância das generalizações históricas) nos ensina que uma crise pode ser uma transformação saudável, e não necessariamente uma marcha cega para o abismo. Que o mito americano (Visão do Paraíso, méritocracia, refúgio de todos os povos e de todos os exilados, etc.), atingiu o seu ponto de reversão crítica - isso é um facto já da vida quotidiana na América do Norte. Que a américa está à beira do abismo (em que ninguém sensato, neste mundo, com a União Soviética à frente, poderá desejar que ela caia, porque arrastaria o mundo consigo, impossibilitando mesmo os sonhos de transformação social dos anti-americanos de profissão ideológica), provavelmente os americanos o sabem instintivamente, ou conscientemente, melhor do que ninguém. O perigo está, momentaneamente, na reacção violenta, que o Mito Americano pode impor a si mesmo para sobreviver-se apenas formalmente. Nunca nenhum mito civilizacional desabou de bom grado; e a grande massa mediana que faz dele, quotidianamente, a sua compensação contra a inanidade vácua da vida nunca historicamente aceitou com racional serenidade tal desabamento, a menos que algo de novo lhe seja prometido. Realmente, na queda do Império Romano (que é bom não esquecer que sobreviveu gloriosamente mil anos em Bizâncio), as massas tiverama esplêndida novidade de se entregarem fanaticamente ao cristianismo em expansão. Na crise actual do mundo moderno (de que a dos Estados Unidos é um aspecto particular, ainda que extremamente decisivo), parece que não apareceu ainda um fenómeno equivalente, superante da divisão de áreas que já nenhuma está imune ao mesmo vento de anarquismo social e moral que sopra por toda a parte. A questão está em saber-se se estamos no limiar de uma Nova Era, uma Idade de Ouro, etc., ou se, ao voltar da esquina, nos não aguarda, nunca vista, e com requintes de ficção científica que tornarão a Inquisição uma instituição liberal, uma Contra-Reforma gigantesca, electrónica, computadorizada, como George Orwell anunciava para 1984. (...)

Nota: a ortografia foi actualizada, pode haver, no entanto, discrepâncias, pois nunca releio os textos.
Jorge de Sena in