Educação accionária

Manifesto plural e não democrático pela acção da/na educação.

2.8.04

As linguagens da linguagem

As linguagens da linguagem – do conceito de gramática à emergência da língua

«Gramática é vocábulo grego. Quer dizer ciência de letras e, segundo a
difinição que lhe os gramáticos deram, é um modo certo e justo de falar e
escrever, colheito do uso e autoridade dos barões doutos.»
Fernão de Oliveira


Origem, unidade e fractura

A Língua Portuguesa, como qualquer sistema novi-latino, tem visto ser-lhe atribuída estudos de duas espécies: (quase) independentemente de uma visão diacrónica ou sincrónica, repousa na taxonomia a sua historicidade, que as gramáticas afixaram em último capítulo, e, dito de forma ligeira, a proveniência do seu léxico, a que os antigos filólogos – arqueólogos de étimos - apunham à estrutura sintáctica base (sujeito, predicado e complementos diversos).
Dito assim, a confusão assalta-nos imediatamente, se considerarmos que pretendemos que duas visões apenas (e a filologia está próxima de nós...) dêem conta de fonologia (ortografia), fonética, morfologia, sintaxe, semântica e, dos nossos dias, pragmática; contudo, esta necessidade imperiosa de ordenar estava tão presente na Idade Média, como está nos nossos dias. A diferença única, a nosso ver, é a reserva actual que estudiosos de determinado campo têm perante diversas disciplinas, mesmo se completam ou complementam o seu próprio objecto de estudo; diferança sentida, ainda, perante um sistema normativo visto como necessário e materializado, claro, em gramática.
Diacronia e sincronia à parte, importa perguntar qual a origem da Língua Portuguesa – até porque a existir gramática a sua sistematização pressupõe que haja uma língua (langue e parole saussurianas) de partida; ou várias. É mais ou menos pacífico entre todos os académicos e a comunidade em geral que o Português provém da Língua Latina. Sendo isto verdade, de qual língua latina?; da culta ou da bárbara? E que língua(s) se falavam na Península Ibérica?
Como se vê a questão não é simples e até chegarmos ao Português actual muitos séculos se passaram e muitos sistemas foram aqui experienciados. A Língua Portuguesa não pode ser indissociável, por exemplo, da conquista romana da Península Ibérica, da invasão dos bárbaros germanos, da constituição dos impérios bárbaros, como o visigótico, do domínio árabe na Península Ibérica, da luta da reconquista cristã, da formação do reino de Portugal e da expansão ultramarina.
Fiquemo-nos, todavia, no local onde o Homem tomou consciência da sua implicação social e cultural e começou a instalar-se com propiedade na História, o Renascimento.
A história da Língua Portuguesa debate-se entre dois pólos: o português medieval e o moderno. Entre os séculos XV e XVI o Português deriva para duas correntes: uma popular, continuadora do estilo medieval, e outra erudita, de feição e molde latinizantes, falada pela elite culta e literata, que pretendia tornar-se paulatinamente a língua padrão. Atente-se, contudo, nisto: a parole erudita nunca se impôs de imediato à parole bárbara, tendo a última, tal como os seus falantes resistiam ao poder instituído, prevalecido como uso e defesa perante a elite... A unidade nacional ficaria para mais tarde!
A par desta tensão linguística, assiste-se a dois factos que contribuíram decisoriamente para a formação do Português: o Latim assume definitivamente a condição universal de cultura e Fé e as línguas vernáculas começam a merecer as primeiras valorizações nacionais (o facto político não lhe é alheio...). O caso português é independente do movimento latinizante e precede-o. Fernão de Oliveira, com a sua Grammatica da Lingoagem Portuguesa de 1536, tornou-se o primeiro gramático português e retém a herança vernacular de D. Dinis, ao instituir o Português como língua oficial, em substituição do Latim, e, no século XV, de D. Duarte que, no seu Leal Conselheiro, aconselha que se evite o uso de latinismos. A novidade da gramática de Fernão de Oliveira reside na fixação da língua natural que até à época se usava e não a que se construía, cuja superficialidade, dizem alguns, aponta. Quatro anos mais tarde (1540) A Gramática da Língua Portuguesa de João de Barros aparece e é diversa da de Fernão de Oliveira. Defendendo também a escrita fonética (“A primeira e principal regra da nossa ortografia é escrever tôdalas dições com tantas lêteras com quantas as pronunciamos, sem poer consoantes ociosas[...]”.), abandonona, contudo, a noção abrangente de língua do primeiro gramático, para a reduzir a uma variedade eleita por razões sociais: “Gramática é vocábulo grego. Quer dizer ciência de letras e, segundo a difinição que lhe os gramáticos deram, é um modo certo e justo de falar e escrever, colheito do uso e autoridade dos barões doutos.”
Seja como for, barões doutos ou plebe simples inculta, a língua vernácula acolhe no seu seio expressões e étimos latinos, bem como socialectos do grosso da plebe: a dinâmica da língua emerge, dilata-se (pelo/com o contacto com os indigenas dos países visitados com a expansão ultramarina) e já não mais será parada. Na literatura, “Os Lusíadas”, poema nobre (Epopeia), é escrito em português; a diplomacia hesita entre o Castelhano e o Francês no contacto com os diversos embaixadores, mas abandona a redacção de documentos oficiais em Latim e priveligia o Português.


Léxico Português

O léxico português, se preciso fosse dizê-lo, tem reminiscências latinas, a seu maior número, mas também reflecte o contacto dos seus falantes com as mais diversas realidades sociais e culturais.
Esse acervo apresenta um núcleo de base latina popular (sublinhe-se) – resultado da assimilação e das transformações do Latim pelas populações nativas ibéricas – a que se juntam contribuições pré-românicas e pós-românicas. Em Portugal parece ter havido, preferencialmente, bilinguismo, chamado adstrato linguístico, em que, inevitavelmente, a língua portuguesa toma de empréstimo (a longo prazo) dados culturais e linguísticos. Foram, no entanto, os termos populares, que modelaram o léxico português (quer a inserção fonológica, quer a morfológica). Note-se que mesmo nas influências de outras línguas, foi o carácter popular que o determinaram.
O vocabulário português, que compreende nomes de parentesco, animais, partes de corpo e verbos, é formado sobretudo de palavras latinas.
Dentro da contribuição pré-românica destacam-se vocábulos de origem Ibérica (abóbora, barro, bezerro, cama, garra, louça, manteiga, sapo, seara); céltica (bico, cabana, aminho, camisa, cerveja, gato, légua, peça, touca); grega (farol, guitarra, microscópio, telefone, telepatia); fenícia (apenas saco, mapa, malha e mata - não havendo muita clareza quanto à sua origem). A contribuição pós-românica, que compreende palavras de origem germânica, relacionadas com o modo de vida de seu povo e à arte militar, ocorre no século V, época das invasões. São exemplos nomes como Rodrigo, Godofredo, guerra, elmo, trégua, arauto e verbos como esgrimir, brandir,roubar,escarnecer.
Apesar de não impor religião e língua, ao conquistarem a Península Ibérica, os árabes deixaram marcas no nosso léxico. Como camada do adstrato, as palavras de origem árabe correntes em português referem-se a nomes de plantas, de alimentos, de ofícios, de instrumentos musicais e agrícolas: alface, algodão, álcool, xarope, almôndega, alfaiate, alaúde, alicate.
Quanto aos empréstimos culturais, ou seja, os que decorrem de intercâmbio cultural, há no léxico português influências diversas de acordo com as épocas. De acordo com Celso Cunha, "a incidência de palavras de empréstimo no português data da época da constituição da língua, e as diferentes contribuições para o seu léxico reproduzem os diversos passos da sua história literária e cultural".
Na época medieval, a poesia trovadoresca provençal influenciou os primeiros textos literários portugueses. Porém, muitos vocábulos provençais, correntes nas cantigas dos trovadores medievais, não se incorporaram à nossa língua. São exemplos de empréstimos provençais: balada, estandarte, refrão, jogral, segrel, trovador, vassalo...
Do século XV ao século XVIII, muitos escritores portugueses, entre eles os poetas do Cancioneiro Geral, Gil Vicente, Camões, escreviam em castelhano e português, o que se explica pelas relações literárias, políticas e comerciais entre as duas nações Ibéricas. Como contribuição de empréstimos espanhóis para o léxico português, temos, entre muitas outras, palavras como bolero, castanhola, caudilho, gado, moreno, galã, pandeiro... O latim corrente já havia contribuído para a base do léxico português, mas foi durante o Renascimento, época em que se valorizou a cultura da Antiguidade, que as obras de escritores romanos serviram de fonte para muitos empréstimos eruditos. Por essa via, desenvolveu-se um processo de derivar palavras do latim literário, em vez de se partir do termo popular português correspondente (daí uma série de adjectivos com radical distinto do respectivo substantivo: ocular / olho, digital / dedo, capilar / cabelo, áureo / ouro, pluvial / chuva). Esse processo é responsável pela coexistência de raízes distintas para termos do mesmo campo semântico. Houve, também a substituição de muitos termos populares por termos eruditos ( palácio / paaço, louvar / loar, formoso / fremoso, silêncio / seenço, joelho / geolho).
A expansão portuguesa na Ásia e na África foi mais uma fonte de empréstimos. São de origem asiática: azul, bambu, beringela, chá, jangada, leque, laranja, tafetá, tulipa, turbante ... São de origem africana: angu, batuque, berimbau, cachimbo, engambelar, marimbondo, moleque, quitanda, quitute, samba, senzala, vatapá ...
Em virtude de relações políticas, culturais e comerciais com outros países, é natural que o léxico português tenha recebido (e continue a receber) influências de outras línguas modernas. Assim, incorporaram-se ao nosso léxico palavras provenientes do francês (chefe, hotel, jardim, paisagem, vitral, vitrina); do inglês (futebol, bife, córner, pudim, repórter, sanduíche, piquenique); do italiano (adágio, alegro, andante, confete, gazeta, macarrão, talharim, piano, mortadela, serenata, salame); do alemão (valsa, manequim, vermute).

O caminho da pragmática (e a conclusão)

Esta pequena viagem pela história da linguagem, de que a gramática e o léxico adquirem primazia, pretende mostrar que a linguagem, em especial a Língua Portuguesa, é uma entidade viva, multifacetada e, tal como um qualquer organismo, reage ao meio em que está inserido e manifesta-se perante influências externas.
Nos nossos dias, já não faz muito sentido estudar gramática – enquanto documento normativo e encerrado em si mesmo -, mas antes perceber os diferentes estados da linguagem; de uma linguística revolucionária (lembremo-nos das suas contribuições nas análises morfológicas em árvore, em que cada constituinte era tão importante como o seu vizinho – o verbo, núcleo de qualquer grupo oracional, por exemplo, viu a sua importância esvaziada) passamos a uma estrutura linguística interiorizada e inerente à própria espécie humana. Este psicologismo ingénuo, falamos, claro, da gramática generativa de Chomsky, assenta na ideia de que não falamos por imitação, mas por termos estruturas linguísticas mentais que nos são inerentes (moldes pré-concebidos), necessitando apenas de um meio para as materializar. Chomsky, contudo, não pode responder a tudo, no que mostra alguma limitação da sua teoria. Doutra forma vejamos: se a Língua Portuguesa abandonou os modelos latinos por declinações (em que morfemas se aplicavam flexionados sempre em dependência dos vizinhos) e se passou para um sistema de flexão simples – singular/plural, masculino/feminino - (com excepção, talvez, do verbo), de que forma se passou mentalmente de uma estrutura para a outra?; a sua teoria também não explica, que se saiba, como se aglutinam, transformam e adaptam morfemas estrangeiros, de que o caso português é paradigmático.
O caminho actual, porque os linguístas já não se querem mais comprometer com o que quer que seja, é de uma pura linguística de observação dos fenómenos do seu objecto de estudo. A norma, todavia, não é, nunca poderá ser, afastada, sob pena de se perder um património comum que nos identifica; fazendo-o, permite que nos realizemos enquanto sujeito colectivo de/ao serviço de um ideal (trans)nacional.
Do castelhano utilizado na corte e nos primeiros textos literários nacionais, passando pelo francês diplomático, até ao inglês como língua franca e mediatizada, de todos esses idiomas, e de muitos outros, recebemos influências. Em alguns casos, esses vocábulos vieram enriquecer o léxico português, porque o não tínhamos, noutros, foram adaptados fonética e graficamente; sobre esses, apenas podemos registá-los com agrado. Outros, contudo, vieram substituir e colocar no olvido palavras lusas, como o caso irritante de performance (desempenho) e mister (treinador), só para enunciar dois casos.
Há porém, ainda, o crescente caso de fadiga de informação que leva as pessoas a comunicar com brevidade, no caso dos telemóveis com siglas. E, parece, assim nos vamos compreendendo e entendendo.
Ora, esta dinâmica incontrolável só pode ser apreendida, ainda que o não seja em tempo real, infelizmente, pela revitalização da pragmática – ajudada pela semântica, é possível perceber os contextos comunicacionais, as suas causas e implicações.
Sem desdenho pelo passado, há um tempo – este tempo! – em que as mudanças acontecem a um ritmo vertiginoso. Atenção e reflexão são os ingredientes necessários para não nos deixarmos ultrapassar.