30.1.04
Há um ano saiu este artigo, no jornal Público, assinado por Desidério Murcho. Vale a pena uma leitura atenta.
29.1.04
Datas de concursos
O ministério da Educação, por comunicado enviado para as redacções dos jornais, informa qual a data previsível para os concursos no continente; para os Açores iniciou-se ontem.
28.1.04
Filosofia da/na Educação
Apesar de chegados há pouco tempo à "blogosfera", comentários têm sido já feitos à nossa pretensão e ideias veiculadas.
A primeira consideração diz respeito ao termo "educação accionária" e a tudo o que dele se infere; um ensino/educação pela acção pessoal de cada docente naquilo que ele tem de mais puro – as suas mais profundas convicções e vocações – operacionalizadas na e pela tolerância da alteridade que se nos perfila. A constatação óbvia de que esse esforço, inicial, deve ser feito por cada um dos actantes educativos e, posteriormente, confrontado pela tensão dialéctica junto dos demais (convenhamos o seguinte: este passo implica que se tenha já ultrapassado o mero plano da técnica inerente às disciplinas leccionadas; acredita-se que se passe gradualmente da esfera transdisciplinar para um caleidoscópio educativo transversal).
As nossas considerações, assim expostas de forma breve, clarificam que para se ser accionário não se pode caminhar pessoal, profissional, social e educativamente ao ritmo de programas propostos e definidos por um organismo estatal (devendo ser ele, contudo, a regulá-lo), mas antes ter um organismo claramente concebido de e para os docentes (os sindicatos, tendo tido embora ao longo dos anos um papel francamente positivo na ajuda aos e na dignificação dos profissionais da educação, por divisões ideológicas, não podem almejar a ser esse organismo). Pelo que se percebe uma Ordem de professores urge criar; uma entidade que permita que os docentes deixem de actuar tangencialmente nas escolas e o passem a fazer a partir de múltiplas secantes, integrando, desta forma, os diversos microgrupos existentes.
Tarefa difícil e excessivamente teórica? A resposta é negativa e nem teria que se modificar muito a estrutura da formação de professores: as Ciências da Educação (todas as disciplinas que ela em si amarra) deveriam ver-se despojadas da Psicologia (que não é ciência, nem é séria!) e permitir que seja a FILOSOFIA o ponto de partida e mediação do acto educativo.
A primeira consideração diz respeito ao termo "educação accionária" e a tudo o que dele se infere; um ensino/educação pela acção pessoal de cada docente naquilo que ele tem de mais puro – as suas mais profundas convicções e vocações – operacionalizadas na e pela tolerância da alteridade que se nos perfila. A constatação óbvia de que esse esforço, inicial, deve ser feito por cada um dos actantes educativos e, posteriormente, confrontado pela tensão dialéctica junto dos demais (convenhamos o seguinte: este passo implica que se tenha já ultrapassado o mero plano da técnica inerente às disciplinas leccionadas; acredita-se que se passe gradualmente da esfera transdisciplinar para um caleidoscópio educativo transversal).
As nossas considerações, assim expostas de forma breve, clarificam que para se ser accionário não se pode caminhar pessoal, profissional, social e educativamente ao ritmo de programas propostos e definidos por um organismo estatal (devendo ser ele, contudo, a regulá-lo), mas antes ter um organismo claramente concebido de e para os docentes (os sindicatos, tendo tido embora ao longo dos anos um papel francamente positivo na ajuda aos e na dignificação dos profissionais da educação, por divisões ideológicas, não podem almejar a ser esse organismo). Pelo que se percebe uma Ordem de professores urge criar; uma entidade que permita que os docentes deixem de actuar tangencialmente nas escolas e o passem a fazer a partir de múltiplas secantes, integrando, desta forma, os diversos microgrupos existentes.
Tarefa difícil e excessivamente teórica? A resposta é negativa e nem teria que se modificar muito a estrutura da formação de professores: as Ciências da Educação (todas as disciplinas que ela em si amarra) deveriam ver-se despojadas da Psicologia (que não é ciência, nem é séria!) e permitir que seja a FILOSOFIA o ponto de partida e mediação do acto educativo.
27.1.04
Acções ministeriais...
O desgraçado estado do Ensino Básico e Secundário pode ser observado aqui; o engraçado estado do Ensino Superior pode ser visto por aqui...
26.1.04
Sociedade evolutiva
O texto que abaixo segue, foi-me enviado por e-mail e deveria, claro, permanecer oculto; no entanto, tem muito a ver - apesar da constatação social óbvia - com a postura denunciadora (sócio-educativa) deste blog. Agradecimentos a Dulce Paula.
Para reflectir
O autor é o João Pereira Coutinho, não o milionário mas sim o
jornalista:
NÃO TENHO FILHOS e tremo só de pensar. Os exemplos que vejo em volta não aconselham temeridades. Hordas de amigos constituem as respectivas proles e, apesar da benesse, não levam vidas descansadas. Pelo contrário: estão invariavelmente mergulhados numa angústia e numa ansiedade de contornos particularmente patológicos. Percebo porquê. Há cem ou duzentos anos, a vida dependia do berço, da posição social e da fortuna familiar. Hoje, não. A criança nasce não numa família mas numa pista de atletismo com as barreiras da praxe: jardim-escola aos três, natação aos quatro, lições de piano aos cinco, escola aos seis. E um exército de professores, explicadores, educadores e psicólogos, como se a criança fosse um potro de competição. Eis a ideologia criminosa que se instalou definitivamente nas sociedades
modernas: a vida não é para ser vivida - mas construída com sucessos pessoais e profissionais, uns atrás dos outros, em progressão geométrica para o infinito. É preciso o emprego de sonho, a casa de sonho, o maridinho de sonho, os amigos de sonho, as férias de sonho, os restaurantes de sonho, as quecas de sonho. Não admira que, até 2020, um terço da população mundial estará a mamar forte no Prozac. É a velha história da cenoura e do
burro:
quanto mais temos, mais queremos. Quanto mais queremos, mais desesperamos. A meritocracia gera uma insatisfação insaciável que acabará por arrasar o mais leve traço de humanidade. O que não deixa de ser uma lástima. Se as pessoas voltassem a ler os clássicos, sobretudo Montaigne, saberiam que o fim último da vida não é a excelência, mas a felicidade.
Para reflectir
O autor é o João Pereira Coutinho, não o milionário mas sim o
jornalista:
NÃO TENHO FILHOS e tremo só de pensar. Os exemplos que vejo em volta não aconselham temeridades. Hordas de amigos constituem as respectivas proles e, apesar da benesse, não levam vidas descansadas. Pelo contrário: estão invariavelmente mergulhados numa angústia e numa ansiedade de contornos particularmente patológicos. Percebo porquê. Há cem ou duzentos anos, a vida dependia do berço, da posição social e da fortuna familiar. Hoje, não. A criança nasce não numa família mas numa pista de atletismo com as barreiras da praxe: jardim-escola aos três, natação aos quatro, lições de piano aos cinco, escola aos seis. E um exército de professores, explicadores, educadores e psicólogos, como se a criança fosse um potro de competição. Eis a ideologia criminosa que se instalou definitivamente nas sociedades
modernas: a vida não é para ser vivida - mas construída com sucessos pessoais e profissionais, uns atrás dos outros, em progressão geométrica para o infinito. É preciso o emprego de sonho, a casa de sonho, o maridinho de sonho, os amigos de sonho, as férias de sonho, os restaurantes de sonho, as quecas de sonho. Não admira que, até 2020, um terço da população mundial estará a mamar forte no Prozac. É a velha história da cenoura e do
burro:
quanto mais temos, mais queremos. Quanto mais queremos, mais desesperamos. A meritocracia gera uma insatisfação insaciável que acabará por arrasar o mais leve traço de humanidade. O que não deixa de ser uma lástima. Se as pessoas voltassem a ler os clássicos, sobretudo Montaigne, saberiam que o fim último da vida não é a excelência, mas a felicidade.
24.1.04
Associação Nacional de Professores em Braga
A ANP (Associação Nacional de professores) vai realizar entre os dias 2 e 3 de Fevereiro, no Parque de Exposições de Braga, um encontro subordinado ao tema "Educação de Qualidade". Em discussão estará a eventual criação de uma Ordem de docentes, bem como a criação de um código deontológico. O encontro contará com presença, no último dia, do Ministro da Educação, David Justino. A página oficial da ANP e o respectivo programa podem ser vistos aqui.
22.1.04
Obrigado, Matamouros
O incontornável blog "matamouros" foi o primeiro a dar conta da nossa aparição e a dar-nos as boas vindas à blogosfera. O nosso reconhecido agradecimento.
Reforma da Educação Especial e Apoio Educativo
O projecto de Decreto-lei da reforma acima referida, pode ser consultado neste endereço (download de 47 páginas em formato PDF).
Declaração de intenções segunda
O percurso accionário, espero que disponível em breve, prepara-se através de "ferramentas convivenciais" (vivam os blogs!). Enquanto não, podem ser vistas as influências - poucas, ainda - na formação de docentes e na atitude pragmática e programática de Illich, em inglês ou castelhano.
Faculdade Filosofia UCP (Braga)
O sétimo volume da Revista Portuguesa de Humanidades já está editado. O índice pode ser consultado por aqui.
21.1.04
20.1.04
Até agora, o site e blog mais interessantes sobre educação (e cidadania). Podem ser visitados por aqui, ou por aqui para os comentários.
19.1.04
A imagem abaixo colocada é mesmo muito bonita! Assim, sim! Unidade sindical e tudo! Mas... greves à sexta-feira? É para prolongar o fim-de-semana? É por estas e por outras que a classe tem uma imagem tão denegrida junto da opinião pública! E é pena, pois esta greve é importante e pertinente. Evidencia-se cada vez mais a necessidade de se criar um organismo alheio a políticas ministeriais e gabinetes sindicais!
Para quem não sabe, os docentes regem-se por um estatuto (código deontológico?), que pode ser lido aqui.
Enquanto não surge texto original, a definição global, teórica e pré-pedagógica sobre educação (adaptação de um texto redigido para estágio de faculdade).
Introdução
«Voilà donc un aperçu d’un travail possible, sur la lecture, à l’école. Il faut essayer d’allier la rigueur de la combinatoire de la souplesse de la lecture oral vécue en situation : Il faut aussi ouvrir la porte sur le monde de l’évasion et de la connaissance. Et pour cela il faut absolument donner envie de lire aux enfants».
Lettre d’information de l’Association Langage Lecture Ortographe, nº 23, 1997, p.3
A escolha de um tema a ser desenvolvido e defendido em sede de Seminário de Francês não se efectuou pacificamente, pois, se por um lado, a nossa postura chocava com um sistema aprioristicamente nivelado em Estágio, por outro, aparentemente, nada nos ocorrera por forma a tratar originalmente um qualquer tema embrionário e/ou adulto consignado nos programas de Ensino – Aprendizagem de Francês Língua Estrangeira.
Esta dificuldade inicial rapidamente veio a ser esbatida quando nos lembrámos dos ensinamentos sarterianos, nomeadamente a de que o homem estaria condenado a tomar posição (sobre algo), aventando mesmo que a abstenção seria uma determinada posição; como não nos podemos abster da escolha de tema, pois seríamos, cremos, fortemente sancionados, decidimo-nos por um que se nos oferece primordial em todas as vertentes em que nos movimentamos, enquanto ser social e profissional: a leitura. Deste ponto de partida, enquadramos a nossa profissão num sistema que transpira democracia e que ascende, dizêmo-lo ingenuamente, a uma «ferramenta convivencial» (Illich) chamada liberdade. Nesse sentido, apresentamos um esboço que pretende mostrar um caminho, ou pelo menos os pontos cardeais, da Leitura Orientada à Leitura Recreativa, acreditando plenamente que os alunos que polulam nas nossas escolas não devem ser alvo de hermenêuticas estanques nem tão pouco de interpretações reducionistas; devem poder munir-se de ferramentas que lhes permitam ler para além das manchas tipográficas das páginas, devem, enfim, preencher e completar o espaço exíguo que o livro ocupa, devendo com este e a partir deste fazer sempre da leitura uma estação onde se evidenciam inúmeros ramais para o conhecimento, onde nitidamente cada via tem o rumo da liberdade.
A nossa convicção de que a leitura é absolutamente fundamental e inequivocamente necessária à própria condição humana, como forma de traçar os vasos comunicantes com a alteridade, levou-nos a considerar a palavra, antiga mas sempre actual, comunicar: diz-nos a etimologia que a sua significação primeira é a de tornar comum. Ora, a leitura afigura-se-nos exactamente isso: dizer algo partilhando conhecimentos, tornar comum dotando a humanidade dos mesmos desígnios, interiorizar determinados conceitos para relativizar diferenças raciais e comportamentos sexuais, conhecer para se caminhar colectivamente na construção do futuro, o dos outros e o nosso próprio.
É este o espaço que queremos, queremo-lo muito, aberto na(s) escola(s). A nossa defesa percorrerá, sem pretensão de dar respostas – apenas algumas linhas de (des)orientação serão relevadas -, leituras e escritas de académicos com larga experiência docente e há muitos anos estudiosos destas questões. Faremos ainda, primeiramente será talvez mais correcto, por nos parecer evidente, a contextualização sociológica (ou uma determinada ideia de socialidade) da escola, recorrendo ao Movimento Situacionista, dele extraindo, graças a Raoul Vaneigem, a classificação de escolas mercantilistas ao mesmo tempo que apelaremos à educabilidade do ser humano, segundo a acepção do professor Adalberto Dias de Carvalho. O caminho acima enunciado, a sua aplicabilidade na sala de aula, será visitado através de três autores, José Leon, Jocelyne Giasson e Maria de Jesus. Terminaremos, devido a uma imposição tecnológica da sociedade em que vivemos, com uma abordagem às novas formas de leitura, os «E-Book», nomeadamente aos textos de Dan Sperber e Umberto Eco, pretendendo saber do desaparecimento do livro tal como o conhecemos e pretendendo questionar a morte da escrita. Por último, apresentaremos «O Manifesto da Transdisciplinaridade» como forma de reflexão e como ponto de viragem para a nova concepção de currículo vigente, a transversalidade.
«Não queremos uma escola onde se aprende a sobreviver, desaprendendo a viver».
Da escola: o espaço incluso
De qual escola falamos quando falamos de Educação? A esta questão, meramente retórica aqui, ressalta a ideia, óbvia, de que a escola (entenda-se: o sistema educativo) é resultado imediato da sociedade que a recebe e que para ela contribui com a memória duradoura de uma determinada positividade social. Essa mesma escola parece ainda não ter despertado, apesar dos desenhos curriculares mais ou menos premonitórios dos gabinetes ministeriais, para a dura realidade de que a sociedade mudou mais em trinta ou quarenta anos do que em três séculos. Já não podemos continuar a ensinar apenas; a ensinar habilidades, no fundo, que os educandos, futuros profissionais, optimizarão a troco da preciosa liga de metal.
A escola é algo mais do que esse mero local de passagem, turturante, de conhecimentos - «Arbeit macht frei »; a escola deve abdicar paulatinamente do seu papel castrador, afastando concomitantemente a sua velha função de selecção de «habilidosos»; o futuro radica e é impelido pelo conhecimento, pela virtude do que é antigo, pela assunção da novidade, mas sobretudo por um determinado projecto antropológico a adoptar nos curricula, o que aliás, sejamos justos, tem vindo a ser evidenciado.
Do que se trata é de colocar o aluno, um ser humano com vontade e convicções próprias, nunca nos esqueçamos, no centro de uma escolha societal perpetrada pela escola. Como parece ser de todo evidente, já não é concebível que a escola seja uma filha bastarda, renegada, olhada com indiferença e desprezo, como um depósito de crianças, como substituta de uma maternidade em crise, olhando-se os professores como simples executores governamentais; não. À escola é reclamado que se afirme como o projecto mais nobre que em sociedade se pode conceber.
Sabemo-nos, até este ponto, utópicos e mesmo redundantes. Tal era necessário, pois, enquanto professores, não poderíamos deixar de reflectir, desapaixonadamente, sobre estas questões.
Por isso mesmo, ou ainda assim, a nossa defesa levou-nos a considerar a Internacional Situacionista e, nomeadamente, Raoul Vaneigem. Esta escolha, pertinente e sem reparos, pensamos, tem uma dupla vantagem: o contexto situacional em que se inscreve e, apesar de tudo, a esperança que ainda podemos ter numa escola verdadeiramente social, onde cada elemento se constrói construindo a sociedade.
O contexto situacional vinca-se claramente a um período que antecede o Maio de 1968, onde jovens académicos e estudantes pugnaram por um ensino diferente e por valores humanistas que se afirmassem e propagassem doravante em sociedade, onde sobressaíam as vontades de ser livre responsavelmente e a responsabilidade (a adquirir) de se ser livre, lutando, física e intelectualmente, contra o «establishment». Deste contexto, e do mais que a história fixou nos livros e nos manuais escolares, os «vintões» de outrora fixaram-se à bandeira libertária e anárquica e, desde então, mais não fazem do que pensar a sociedade e no modo de a influenciar; nesta sociedade (lembremo-nos de Ortega y Gasset: «o homem é a circunstância em que vive») de globalizações e de contra-globalizações (os próprios movimentos contrários, o que não deixa de ser irónico, são globais...) seria normal que, com mais ou menos insistência, os Situacionistas se revissem à luz da sua utopia e da sua própria postura académica e social. As conclusões não são brilhantes, como veremos; não obstante, ainda há uma saída, pelo sonho, rumo à liberdade e à autonomia, mesmo se os cavaleiros de outrora se apresentam, nas nossas instituições públicas, com o gorro de carrascos.
Raoul Vaneigem considera que «a escola está no centro duma zona de turbulência onde os verdes anos se afundam na tristeza e no mau humor, onde a nevrose conjugada do ensinante e do ensinado imprime o seu movimento à balança da resignação e da revolta, da frustração e da raiva (pp. 16,17)». Ainda assim, continua Raoul Vaneigem, [a escola] «é também o lugar privilegiado dum renascimento. Traz consigo em gestação a consciência que está no âmago da nossa época: assegurar a prioridade ao que é vivo em detrimento da economia de sobrevivência. A escola detém a chave dos sonhos numa sociedade que os não tem (…)». Percebemos claramente a importância de que se pode revestir a escola, o que aliás já tínhamos claramente dito. Mas Raoul Vaneigem vai mais longe, subvertendo mesmo a lógica que parece inerente àquilo que se convencionou designar por «politicamente correcto». Por nos parecer demasiado importante o que escreve fazendo apenas breves alusões, transcrevemos na íntegra os passos que consideramos mais importantes.
«Doravante, todas as crianças, todos os adolescentes e todos os adultos se encontram numa encruzilhada em que se vêem obrigados a escolher: ou esgotarem-se num mundo que a lógica da rendibilidade a todo o preço esgota, ou criarem a sua própria vida, criando um ambiente que lhes assegure plenitude e harmonia. A vida quotidiana não pode continuar a confundir-se com isto, com esta sobrevivência de remendos a que a reduziram os homens que produzem a mercadoria e por esta são produzidos. (…) É tempo de o memento vivere substituir o memento mori que estigmatizava os conhecimentos, com o pretexto de que nunca nada está adquirido.
Deixámo-nos persuadir por tempo demais que do destino comum só havia a esperar degradação e morte. É uma visão de velhos prematuros, de golden boys a desabar na senilidade precoce, por terem preterido o dinheiro à infância.» (pp. 17, 18 e 19)
Quando lemos os escritos deste autor e, mais importante, reflectimos na crítica que sustenta, não podemos deixar de reconhecer um local que visitamos frequentemente, sentindo o arrepio evidente de muitas semelhanças encontradas, embora não consigamos partilhar da sua visão exageradamente catastrofista.
Ao contrário de inúmera crítica que conhecemos, este autor não se limita a ser contestatário e a rebelar-se dentro do sistema em que vive e trabalha; entre outros, há um caminho que em nós desperta ânimo e que queremos seguir na nossa actividade docente. Esse caminho é, apesar do mapa utópico que o suporta, sobriamente apontado por Vaneigem, quando escreve que «para se acabar com a opressão, a miséria e a exploração, já não basta uma subversão envenenada pelos valores mortos que combate. Chegou o tempo de se investir na paixão irreprimível do que é vivo, do amor, do conhecimento e da aventura, paixão que a cada instante, quem quer que tenha decidido criar-se segundo a sua “linha do coração” há-de inaugurar» (19). Profeticamente, este herdeiro do Maio de 68 tem a convicção de que a «a sociedade nova começa onde começa a aprendizagem duma vida omnipresente. Uma vida a assimilar e a entender no mineral, no vegetal, no mineral, no animal, reinos de que o homem é oriundo e que em si contém com tanta inconsciência e desprezo. Mas uma vida igualmente alicerçada na criatividade, e não no trabalho; na autenticidade, e não na aparência; na exuberância dos desejos, e não nos mecanismos do recalcamento e da exteriorização programada. Uma vida despojada do medo do constrangimento, da culpabilidade, da transacção, da dependência. Porque essa vida, de modo inseparável, conjuga no indivíduo a consciência e a fruição de si mesmo e do mundo (20)».
Mais até do que um caminho, anuncia-se um programa; não será preciso muito para, numa leitura sem grande atenção, ver ser dada à autonomia a primazia da própria convivencialidade social. Mas fica dado o aviso: «se a escola não ensina a lutar a favor da vontade de viver, ensinando a agir em prol da autoridade, há-de assim condenar gerações sucessivas à resignação, à servidão e a uma revolta suicida. Há-de transformar em sopro de morte e de barbárie aquilo que cada qual possui de mais vivo e mais humano(21)».
«No indivíduo o cumprimento do destino (homem) é mesmo inteiramente impossível. Só a espécie e não os indivíduos é quem pode lá chegar». (Kant)
Pelo que atrás foi redigido, percebemos o corte epistemológico operado, ou pelo menos desejado, com relação à educação. Percebe-se ainda que muitos dos comportamentos exteriorizados na juventude são, posteriormente, condenados a uma atitude inversa e subversiva, o que no nosso entender é, no mínimo, lamentável, ainda que de algum modo previsível; ficamo-nos pela evolução na continuidade. Ainda assim, enfatizemos, há evolução.
Ter-nos-ia sido fácil apelar a diversos modelos escolásticos, directivos, positivos ou negativos, libertários, clássicos ou tradicionais. Longe, porém, de largas teorias já estudadas, gastas e adulteradas pelo tempo, recorremos à própria sistematização que delas faz o professor Adalberto Dias de Carvalho, na sua obra «Utopia e Educação». Diz-nos a nossa experiência e intuição que já não mais a escola se poderá dissociar da sociedade nem esta última ver na primeira uma reserva moral republicana, que, alías, por ser reserva, há muito parece ter sido entregue à sua sorte.
As questões, as problemáticas, levantadas por Adalberto de Carvalho, corria o ano de 1994, parecem ainda não ter sido totalmente respondidas e debeladas, se bem que utilizadas na Pedagogia do Projecto, tão em voga nas nossas universidades. A dificuldade parece estar relacionada com uma certa filosofia remanescente da pedagogia. Ora, do que se trata é de considerar que só o homem pode aspirar a ser educado e, mais importante, a educar-se na e pela escola.
A esse propósito, Adalberto Dias de Carvalho escreve que «a educação aparece como uma necessidade decorrente do carácter inconcluso do homem enquanto ser natural (…) (pp. 51)». Pressuposto discutível, todavia aceitável em Filosofia, o que Dias de Carvalho faz é uma aproximação entre a antropologia e a área educativa. Este ponto, que é uma segunda evidência de uma teoria mais vasta, aparece porque o autor considera que dessa união emerge o conceito de educabilidade , que, «contendo a expressão de um dos traços mais genuinamente humanos, nele confluem os pressupostos fundamentais do desenvolvimento dos projectos educativos que, por o serem, são assim também projectos antropológicos» (pp 51).
Fala-se, empiricamente, de aperfeiçoar o ser humano e de o concluir pela educação. Este será um primeiro nível da realidade apreensível da conjugação entre antropologia e educação; o segundo nível, aquele em que aparece a educabilidade e que já foi descrito no parágrafo anterior, afirma claramente que a educação já não é tanto «o corolário da vontade projectiva de um sujeito consciente mas, sobretudo, a resultante de um estado de carência» (51). Completando o seu raciocínio, o professor Adalberto de Carvalho afirma que «de facto, parece ser muito diferente a educação brotar da aspiração de um homem em busca da realização da sua própria especificidade, de um homem que (…) afirma a sua identidade como sujeito capaz de gerir o seu destino pessoal, da outra situação em que ela se institui, simultaneamente, como sinal e resposta para uma natureza humana que, ao surgir como especialmente incompleta, demonstra possuir uma iniludível fragilidade e até dependência das estruturas que lhe não são imediatamente intrínsecas» (53). Do que se fala é da emergência dos conceitos de educabilidade e educatividade.
Este discurso que aqui trazemos, doseado de hermetismo bastante, tem apenas uma significação, já definida, pelo menos, desde Kant: só o homem é susceptível de ser educado. Como se lhe refere Adalberto Carvalho, colocando Kant a educabilidade no centro das atenções, «fá-lo, contudo, não tanto para acentuar as carências do ser humano (…), mas para valorizar o potencial sentido antropológico do futuro que cumpre à educação realizar através do aprofundamento da liberdade de que o homem desfruta no espaço da sua não-determinação natural . Significa isto (…) que a humanidade deve progressivamente reconhecer-se como autor[a] do seu próprio destino» (53). Resumindo a obra pedagógica de Kant referida por Adalberto Carvalho, poderíamos dizer que o âmago da questão tratada é o de «conduzir a criança da natureza à liberdade » (54).
Sistematizando a «Utupia» de Adalberto Carvalho, poderá dizer-se, utilizando as suas próprias palavras, que «a natureza propicia ao homem a possibilidade de se tornar um ser livre dentro da ordem da razão. (…) E é aqui que a educação desempenha o seu papel antropologicamente decisivo: não constituindo um fim em si, ela é todavia, imprescindível para o cumprimento do homem como fim em si mesmo, privilégio de que ele é o único a desfrutar e que é o corolário da sua própria não-determinação»(55).
Concluindo o seu o pensamento, «a educação serve, pois, a construção de um homem definido pelo seu futuro: anticipa a humanidade futura – o que lhe confere sentido – porque o homem tem necessidade da educação para concretizar a sua liberdade e se instituir como ser moral. Daí que a educabilidade seja, de uma só vez, fundamento e garante do projecto antropológico e do projecto educativo» (55).
Esta linha de pensamento, sem dúvida notável em todos os sentidos (dizê-mo-lo desinteressada mas apaixonadamente) que consubstancia o homo educandus, afastando a neutralidade axiológica (de que partilhamos), é uma clara aposta numa mensagem humanista que não pode ser ignorada, pelo contrário, deve manifestamente ser aplicada transdisciplinar e transversalmente na escola, não se tratando aqui de abandonar a lógica educativa própria da pedagogia a favor da filosofia enunciada.
Sobre esse assunto, Adalberto Dias de Carvalho, em jeito de conclusão, sua e nossa, abordando o conceito de projecto questiona «se a superação da pedagogia do projecto será possível sem que se rompa com a antropologia e sem que se omita o homem, ou seja, sem que se anule o homem como sujeito da educação – como educador e como educando -, o mesmo é dizer, sem que se ponha em causa a abertura da relação de alteridade que constitui o núcleo (filosófico) da consciência reflexiva» (171). Numa base mais sustentada, reafirma que «só se pode ser um sujeito real dos projectos pedagógicos – teóricos ou práticos – quando a implicação pessoal assentar numa disponibilidade primordial para o outro, seja qual for a natureza que este assuma» (171/172).
Assim sendo, «a pedagogia da complexidade é mesmo um dos instrumentos essenciais para que, no seio da sociedade tecnológica – diz Adalberto de Carvalho sobre o tempo preciso das nossas escolas, naquilo que será uma mensagem para o futuro – fortemente caracterizada pela imprevisibilidade e pela autonomia dos grupos sociais, se desenvolva uma educação capaz de instituir uma solidariedade pragmática (inclusive, com a natureza) necessária para a própria sobrevivência desses grupos».
Não nos esquecemos do propósito deste trabalho de Seminário que consigna um caminho da Leitura Orientada à Leitura Recreativa; o desvio se surge neste primeiro capítulo pretende, por um lado, que nos situemos relativamente a um tempo escolar onde vivemos e onde trabalhamos, por outro, defender e criar disposições materiais e mentais, com a alteridade por companheira - «touche pas à mon pot!» -, por forma a dotar o espaço de leccionação de algo mais do que simples transmissão de conhecimentos; construí-los construindo-nos é o que se nos apresenta como evidente e mais importante.
Por termos a forte convicção de que a leitura é um meio (e um fim em si mesmo) fundamental de criação desse espaço para todos os actantes educativos, optamos por ter junto de nós os horizontes de Raoul Vaneigem e do professor Adalberto de Carvalho, do sonho, do inconformismo e da mudança , da aplicabilidade e da via operatória dos projectos, respectivamente.
Nesses horizontes é claramente visível o caminho da alteridade, da autonomia e da elevação educativa, enfim, numa expressão que tanto nos é cara, da construção do si.
«Cada geração, instruída com os conhecimentos da precedente, está sempre apta a estabelecer uma educação que desenvolva de uma maneira final e proporcionada todas as disposições materiais do homem e que assim conduza toda a espécie humana ao seu destino (pp. 58)». Esperemos que sim, através da leitura autónoma.
Introdução
«Voilà donc un aperçu d’un travail possible, sur la lecture, à l’école. Il faut essayer d’allier la rigueur de la combinatoire de la souplesse de la lecture oral vécue en situation : Il faut aussi ouvrir la porte sur le monde de l’évasion et de la connaissance. Et pour cela il faut absolument donner envie de lire aux enfants».
Lettre d’information de l’Association Langage Lecture Ortographe, nº 23, 1997, p.3
A escolha de um tema a ser desenvolvido e defendido em sede de Seminário de Francês não se efectuou pacificamente, pois, se por um lado, a nossa postura chocava com um sistema aprioristicamente nivelado em Estágio, por outro, aparentemente, nada nos ocorrera por forma a tratar originalmente um qualquer tema embrionário e/ou adulto consignado nos programas de Ensino – Aprendizagem de Francês Língua Estrangeira.
Esta dificuldade inicial rapidamente veio a ser esbatida quando nos lembrámos dos ensinamentos sarterianos, nomeadamente a de que o homem estaria condenado a tomar posição (sobre algo), aventando mesmo que a abstenção seria uma determinada posição; como não nos podemos abster da escolha de tema, pois seríamos, cremos, fortemente sancionados, decidimo-nos por um que se nos oferece primordial em todas as vertentes em que nos movimentamos, enquanto ser social e profissional: a leitura. Deste ponto de partida, enquadramos a nossa profissão num sistema que transpira democracia e que ascende, dizêmo-lo ingenuamente, a uma «ferramenta convivencial» (Illich) chamada liberdade. Nesse sentido, apresentamos um esboço que pretende mostrar um caminho, ou pelo menos os pontos cardeais, da Leitura Orientada à Leitura Recreativa, acreditando plenamente que os alunos que polulam nas nossas escolas não devem ser alvo de hermenêuticas estanques nem tão pouco de interpretações reducionistas; devem poder munir-se de ferramentas que lhes permitam ler para além das manchas tipográficas das páginas, devem, enfim, preencher e completar o espaço exíguo que o livro ocupa, devendo com este e a partir deste fazer sempre da leitura uma estação onde se evidenciam inúmeros ramais para o conhecimento, onde nitidamente cada via tem o rumo da liberdade.
A nossa convicção de que a leitura é absolutamente fundamental e inequivocamente necessária à própria condição humana, como forma de traçar os vasos comunicantes com a alteridade, levou-nos a considerar a palavra, antiga mas sempre actual, comunicar: diz-nos a etimologia que a sua significação primeira é a de tornar comum. Ora, a leitura afigura-se-nos exactamente isso: dizer algo partilhando conhecimentos, tornar comum dotando a humanidade dos mesmos desígnios, interiorizar determinados conceitos para relativizar diferenças raciais e comportamentos sexuais, conhecer para se caminhar colectivamente na construção do futuro, o dos outros e o nosso próprio.
É este o espaço que queremos, queremo-lo muito, aberto na(s) escola(s). A nossa defesa percorrerá, sem pretensão de dar respostas – apenas algumas linhas de (des)orientação serão relevadas -, leituras e escritas de académicos com larga experiência docente e há muitos anos estudiosos destas questões. Faremos ainda, primeiramente será talvez mais correcto, por nos parecer evidente, a contextualização sociológica (ou uma determinada ideia de socialidade) da escola, recorrendo ao Movimento Situacionista, dele extraindo, graças a Raoul Vaneigem, a classificação de escolas mercantilistas ao mesmo tempo que apelaremos à educabilidade do ser humano, segundo a acepção do professor Adalberto Dias de Carvalho. O caminho acima enunciado, a sua aplicabilidade na sala de aula, será visitado através de três autores, José Leon, Jocelyne Giasson e Maria de Jesus. Terminaremos, devido a uma imposição tecnológica da sociedade em que vivemos, com uma abordagem às novas formas de leitura, os «E-Book», nomeadamente aos textos de Dan Sperber e Umberto Eco, pretendendo saber do desaparecimento do livro tal como o conhecemos e pretendendo questionar a morte da escrita. Por último, apresentaremos «O Manifesto da Transdisciplinaridade» como forma de reflexão e como ponto de viragem para a nova concepção de currículo vigente, a transversalidade.
«Não queremos uma escola onde se aprende a sobreviver, desaprendendo a viver».
Da escola: o espaço incluso
De qual escola falamos quando falamos de Educação? A esta questão, meramente retórica aqui, ressalta a ideia, óbvia, de que a escola (entenda-se: o sistema educativo) é resultado imediato da sociedade que a recebe e que para ela contribui com a memória duradoura de uma determinada positividade social. Essa mesma escola parece ainda não ter despertado, apesar dos desenhos curriculares mais ou menos premonitórios dos gabinetes ministeriais, para a dura realidade de que a sociedade mudou mais em trinta ou quarenta anos do que em três séculos. Já não podemos continuar a ensinar apenas; a ensinar habilidades, no fundo, que os educandos, futuros profissionais, optimizarão a troco da preciosa liga de metal.
A escola é algo mais do que esse mero local de passagem, turturante, de conhecimentos - «Arbeit macht frei »; a escola deve abdicar paulatinamente do seu papel castrador, afastando concomitantemente a sua velha função de selecção de «habilidosos»; o futuro radica e é impelido pelo conhecimento, pela virtude do que é antigo, pela assunção da novidade, mas sobretudo por um determinado projecto antropológico a adoptar nos curricula, o que aliás, sejamos justos, tem vindo a ser evidenciado.
Do que se trata é de colocar o aluno, um ser humano com vontade e convicções próprias, nunca nos esqueçamos, no centro de uma escolha societal perpetrada pela escola. Como parece ser de todo evidente, já não é concebível que a escola seja uma filha bastarda, renegada, olhada com indiferença e desprezo, como um depósito de crianças, como substituta de uma maternidade em crise, olhando-se os professores como simples executores governamentais; não. À escola é reclamado que se afirme como o projecto mais nobre que em sociedade se pode conceber.
Sabemo-nos, até este ponto, utópicos e mesmo redundantes. Tal era necessário, pois, enquanto professores, não poderíamos deixar de reflectir, desapaixonadamente, sobre estas questões.
Por isso mesmo, ou ainda assim, a nossa defesa levou-nos a considerar a Internacional Situacionista e, nomeadamente, Raoul Vaneigem. Esta escolha, pertinente e sem reparos, pensamos, tem uma dupla vantagem: o contexto situacional em que se inscreve e, apesar de tudo, a esperança que ainda podemos ter numa escola verdadeiramente social, onde cada elemento se constrói construindo a sociedade.
O contexto situacional vinca-se claramente a um período que antecede o Maio de 1968, onde jovens académicos e estudantes pugnaram por um ensino diferente e por valores humanistas que se afirmassem e propagassem doravante em sociedade, onde sobressaíam as vontades de ser livre responsavelmente e a responsabilidade (a adquirir) de se ser livre, lutando, física e intelectualmente, contra o «establishment». Deste contexto, e do mais que a história fixou nos livros e nos manuais escolares, os «vintões» de outrora fixaram-se à bandeira libertária e anárquica e, desde então, mais não fazem do que pensar a sociedade e no modo de a influenciar; nesta sociedade (lembremo-nos de Ortega y Gasset: «o homem é a circunstância em que vive») de globalizações e de contra-globalizações (os próprios movimentos contrários, o que não deixa de ser irónico, são globais...) seria normal que, com mais ou menos insistência, os Situacionistas se revissem à luz da sua utopia e da sua própria postura académica e social. As conclusões não são brilhantes, como veremos; não obstante, ainda há uma saída, pelo sonho, rumo à liberdade e à autonomia, mesmo se os cavaleiros de outrora se apresentam, nas nossas instituições públicas, com o gorro de carrascos.
Raoul Vaneigem considera que «a escola está no centro duma zona de turbulência onde os verdes anos se afundam na tristeza e no mau humor, onde a nevrose conjugada do ensinante e do ensinado imprime o seu movimento à balança da resignação e da revolta, da frustração e da raiva (pp. 16,17)». Ainda assim, continua Raoul Vaneigem, [a escola] «é também o lugar privilegiado dum renascimento. Traz consigo em gestação a consciência que está no âmago da nossa época: assegurar a prioridade ao que é vivo em detrimento da economia de sobrevivência. A escola detém a chave dos sonhos numa sociedade que os não tem (…)». Percebemos claramente a importância de que se pode revestir a escola, o que aliás já tínhamos claramente dito. Mas Raoul Vaneigem vai mais longe, subvertendo mesmo a lógica que parece inerente àquilo que se convencionou designar por «politicamente correcto». Por nos parecer demasiado importante o que escreve fazendo apenas breves alusões, transcrevemos na íntegra os passos que consideramos mais importantes.
«Doravante, todas as crianças, todos os adolescentes e todos os adultos se encontram numa encruzilhada em que se vêem obrigados a escolher: ou esgotarem-se num mundo que a lógica da rendibilidade a todo o preço esgota, ou criarem a sua própria vida, criando um ambiente que lhes assegure plenitude e harmonia. A vida quotidiana não pode continuar a confundir-se com isto, com esta sobrevivência de remendos a que a reduziram os homens que produzem a mercadoria e por esta são produzidos. (…) É tempo de o memento vivere substituir o memento mori que estigmatizava os conhecimentos, com o pretexto de que nunca nada está adquirido.
Deixámo-nos persuadir por tempo demais que do destino comum só havia a esperar degradação e morte. É uma visão de velhos prematuros, de golden boys a desabar na senilidade precoce, por terem preterido o dinheiro à infância.» (pp. 17, 18 e 19)
Quando lemos os escritos deste autor e, mais importante, reflectimos na crítica que sustenta, não podemos deixar de reconhecer um local que visitamos frequentemente, sentindo o arrepio evidente de muitas semelhanças encontradas, embora não consigamos partilhar da sua visão exageradamente catastrofista.
Ao contrário de inúmera crítica que conhecemos, este autor não se limita a ser contestatário e a rebelar-se dentro do sistema em que vive e trabalha; entre outros, há um caminho que em nós desperta ânimo e que queremos seguir na nossa actividade docente. Esse caminho é, apesar do mapa utópico que o suporta, sobriamente apontado por Vaneigem, quando escreve que «para se acabar com a opressão, a miséria e a exploração, já não basta uma subversão envenenada pelos valores mortos que combate. Chegou o tempo de se investir na paixão irreprimível do que é vivo, do amor, do conhecimento e da aventura, paixão que a cada instante, quem quer que tenha decidido criar-se segundo a sua “linha do coração” há-de inaugurar» (19). Profeticamente, este herdeiro do Maio de 68 tem a convicção de que a «a sociedade nova começa onde começa a aprendizagem duma vida omnipresente. Uma vida a assimilar e a entender no mineral, no vegetal, no mineral, no animal, reinos de que o homem é oriundo e que em si contém com tanta inconsciência e desprezo. Mas uma vida igualmente alicerçada na criatividade, e não no trabalho; na autenticidade, e não na aparência; na exuberância dos desejos, e não nos mecanismos do recalcamento e da exteriorização programada. Uma vida despojada do medo do constrangimento, da culpabilidade, da transacção, da dependência. Porque essa vida, de modo inseparável, conjuga no indivíduo a consciência e a fruição de si mesmo e do mundo (20)».
Mais até do que um caminho, anuncia-se um programa; não será preciso muito para, numa leitura sem grande atenção, ver ser dada à autonomia a primazia da própria convivencialidade social. Mas fica dado o aviso: «se a escola não ensina a lutar a favor da vontade de viver, ensinando a agir em prol da autoridade, há-de assim condenar gerações sucessivas à resignação, à servidão e a uma revolta suicida. Há-de transformar em sopro de morte e de barbárie aquilo que cada qual possui de mais vivo e mais humano(21)».
«No indivíduo o cumprimento do destino (homem) é mesmo inteiramente impossível. Só a espécie e não os indivíduos é quem pode lá chegar». (Kant)
Pelo que atrás foi redigido, percebemos o corte epistemológico operado, ou pelo menos desejado, com relação à educação. Percebe-se ainda que muitos dos comportamentos exteriorizados na juventude são, posteriormente, condenados a uma atitude inversa e subversiva, o que no nosso entender é, no mínimo, lamentável, ainda que de algum modo previsível; ficamo-nos pela evolução na continuidade. Ainda assim, enfatizemos, há evolução.
Ter-nos-ia sido fácil apelar a diversos modelos escolásticos, directivos, positivos ou negativos, libertários, clássicos ou tradicionais. Longe, porém, de largas teorias já estudadas, gastas e adulteradas pelo tempo, recorremos à própria sistematização que delas faz o professor Adalberto Dias de Carvalho, na sua obra «Utopia e Educação». Diz-nos a nossa experiência e intuição que já não mais a escola se poderá dissociar da sociedade nem esta última ver na primeira uma reserva moral republicana, que, alías, por ser reserva, há muito parece ter sido entregue à sua sorte.
As questões, as problemáticas, levantadas por Adalberto de Carvalho, corria o ano de 1994, parecem ainda não ter sido totalmente respondidas e debeladas, se bem que utilizadas na Pedagogia do Projecto, tão em voga nas nossas universidades. A dificuldade parece estar relacionada com uma certa filosofia remanescente da pedagogia. Ora, do que se trata é de considerar que só o homem pode aspirar a ser educado e, mais importante, a educar-se na e pela escola.
A esse propósito, Adalberto Dias de Carvalho escreve que «a educação aparece como uma necessidade decorrente do carácter inconcluso do homem enquanto ser natural (…) (pp. 51)». Pressuposto discutível, todavia aceitável em Filosofia, o que Dias de Carvalho faz é uma aproximação entre a antropologia e a área educativa. Este ponto, que é uma segunda evidência de uma teoria mais vasta, aparece porque o autor considera que dessa união emerge o conceito de educabilidade , que, «contendo a expressão de um dos traços mais genuinamente humanos, nele confluem os pressupostos fundamentais do desenvolvimento dos projectos educativos que, por o serem, são assim também projectos antropológicos» (pp 51).
Fala-se, empiricamente, de aperfeiçoar o ser humano e de o concluir pela educação. Este será um primeiro nível da realidade apreensível da conjugação entre antropologia e educação; o segundo nível, aquele em que aparece a educabilidade e que já foi descrito no parágrafo anterior, afirma claramente que a educação já não é tanto «o corolário da vontade projectiva de um sujeito consciente mas, sobretudo, a resultante de um estado de carência» (51). Completando o seu raciocínio, o professor Adalberto de Carvalho afirma que «de facto, parece ser muito diferente a educação brotar da aspiração de um homem em busca da realização da sua própria especificidade, de um homem que (…) afirma a sua identidade como sujeito capaz de gerir o seu destino pessoal, da outra situação em que ela se institui, simultaneamente, como sinal e resposta para uma natureza humana que, ao surgir como especialmente incompleta, demonstra possuir uma iniludível fragilidade e até dependência das estruturas que lhe não são imediatamente intrínsecas» (53). Do que se fala é da emergência dos conceitos de educabilidade e educatividade.
Este discurso que aqui trazemos, doseado de hermetismo bastante, tem apenas uma significação, já definida, pelo menos, desde Kant: só o homem é susceptível de ser educado. Como se lhe refere Adalberto Carvalho, colocando Kant a educabilidade no centro das atenções, «fá-lo, contudo, não tanto para acentuar as carências do ser humano (…), mas para valorizar o potencial sentido antropológico do futuro que cumpre à educação realizar através do aprofundamento da liberdade de que o homem desfruta no espaço da sua não-determinação natural . Significa isto (…) que a humanidade deve progressivamente reconhecer-se como autor[a] do seu próprio destino» (53). Resumindo a obra pedagógica de Kant referida por Adalberto Carvalho, poderíamos dizer que o âmago da questão tratada é o de «conduzir a criança da natureza à liberdade » (54).
Sistematizando a «Utupia» de Adalberto Carvalho, poderá dizer-se, utilizando as suas próprias palavras, que «a natureza propicia ao homem a possibilidade de se tornar um ser livre dentro da ordem da razão. (…) E é aqui que a educação desempenha o seu papel antropologicamente decisivo: não constituindo um fim em si, ela é todavia, imprescindível para o cumprimento do homem como fim em si mesmo, privilégio de que ele é o único a desfrutar e que é o corolário da sua própria não-determinação»(55).
Concluindo o seu o pensamento, «a educação serve, pois, a construção de um homem definido pelo seu futuro: anticipa a humanidade futura – o que lhe confere sentido – porque o homem tem necessidade da educação para concretizar a sua liberdade e se instituir como ser moral. Daí que a educabilidade seja, de uma só vez, fundamento e garante do projecto antropológico e do projecto educativo» (55).
Esta linha de pensamento, sem dúvida notável em todos os sentidos (dizê-mo-lo desinteressada mas apaixonadamente) que consubstancia o homo educandus, afastando a neutralidade axiológica (de que partilhamos), é uma clara aposta numa mensagem humanista que não pode ser ignorada, pelo contrário, deve manifestamente ser aplicada transdisciplinar e transversalmente na escola, não se tratando aqui de abandonar a lógica educativa própria da pedagogia a favor da filosofia enunciada.
Sobre esse assunto, Adalberto Dias de Carvalho, em jeito de conclusão, sua e nossa, abordando o conceito de projecto questiona «se a superação da pedagogia do projecto será possível sem que se rompa com a antropologia e sem que se omita o homem, ou seja, sem que se anule o homem como sujeito da educação – como educador e como educando -, o mesmo é dizer, sem que se ponha em causa a abertura da relação de alteridade que constitui o núcleo (filosófico) da consciência reflexiva» (171). Numa base mais sustentada, reafirma que «só se pode ser um sujeito real dos projectos pedagógicos – teóricos ou práticos – quando a implicação pessoal assentar numa disponibilidade primordial para o outro, seja qual for a natureza que este assuma» (171/172).
Assim sendo, «a pedagogia da complexidade é mesmo um dos instrumentos essenciais para que, no seio da sociedade tecnológica – diz Adalberto de Carvalho sobre o tempo preciso das nossas escolas, naquilo que será uma mensagem para o futuro – fortemente caracterizada pela imprevisibilidade e pela autonomia dos grupos sociais, se desenvolva uma educação capaz de instituir uma solidariedade pragmática (inclusive, com a natureza) necessária para a própria sobrevivência desses grupos».
Não nos esquecemos do propósito deste trabalho de Seminário que consigna um caminho da Leitura Orientada à Leitura Recreativa; o desvio se surge neste primeiro capítulo pretende, por um lado, que nos situemos relativamente a um tempo escolar onde vivemos e onde trabalhamos, por outro, defender e criar disposições materiais e mentais, com a alteridade por companheira - «touche pas à mon pot!» -, por forma a dotar o espaço de leccionação de algo mais do que simples transmissão de conhecimentos; construí-los construindo-nos é o que se nos apresenta como evidente e mais importante.
Por termos a forte convicção de que a leitura é um meio (e um fim em si mesmo) fundamental de criação desse espaço para todos os actantes educativos, optamos por ter junto de nós os horizontes de Raoul Vaneigem e do professor Adalberto de Carvalho, do sonho, do inconformismo e da mudança , da aplicabilidade e da via operatória dos projectos, respectivamente.
Nesses horizontes é claramente visível o caminho da alteridade, da autonomia e da elevação educativa, enfim, numa expressão que tanto nos é cara, da construção do si.
«Cada geração, instruída com os conhecimentos da precedente, está sempre apta a estabelecer uma educação que desenvolva de uma maneira final e proporcionada todas as disposições materiais do homem e que assim conduza toda a espécie humana ao seu destino (pp. 58)». Esperemos que sim, através da leitura autónoma.
18.1.04
A educação - paradigma social, profissional, programático e político - foi sempre, ao longo dos tempos, uma das áreas que maior investimento intelectual teve e, na mesma proporção, a que menos se esforçou por deter, compreender e desenvolver as ferramentas sociais que a atravessavam transdisciplinarmente.
A criação deste blog que arrancará em força a qualquer momento! - pretende, não sem cinismo, olhar criticamente para o ensino que se pratica no nosso País. Pretende-se um espaço amplo e livre: contudo, não pode haver ilusões; não se quer francas ideologias, mas antes atitudes retiradas dos paradigmas que nós, docentes, defendemos, compreendemos e aplicamos na sala de aula e no universo educativo. Porque pensamos neles, porque os interiorizamos, porque os experimentamos - validando-os ou não. Sobretudo porque temos da nossa profissão, mais do que a administração da técnica (cada vez menor!), o exercício continuado da reflexão e objectos de aplicação claramente identificados.
Para primeiro texto (reflexão), e sem grandes insultos, comprometo-me desde já, o elogio da loucura. O elogio aos colegas que estagiam e que suportam, e tantos e na maioria dos casos, as arbitrariedades, vaidades, ignorância e prepotência dos orientadores de estágio...
A criação deste blog que arrancará em força a qualquer momento! - pretende, não sem cinismo, olhar criticamente para o ensino que se pratica no nosso País. Pretende-se um espaço amplo e livre: contudo, não pode haver ilusões; não se quer francas ideologias, mas antes atitudes retiradas dos paradigmas que nós, docentes, defendemos, compreendemos e aplicamos na sala de aula e no universo educativo. Porque pensamos neles, porque os interiorizamos, porque os experimentamos - validando-os ou não. Sobretudo porque temos da nossa profissão, mais do que a administração da técnica (cada vez menor!), o exercício continuado da reflexão e objectos de aplicação claramente identificados.
Para primeiro texto (reflexão), e sem grandes insultos, comprometo-me desde já, o elogio da loucura. O elogio aos colegas que estagiam e que suportam, e tantos e na maioria dos casos, as arbitrariedades, vaidades, ignorância e prepotência dos orientadores de estágio...