Fundamentação didáctico-pedagógica
Por insistência de uma amiga, que os anos souberam manter, sucedia-se-me uma quase peregrinação quotidiana à sua doença. Numa dessas visitas póstumas, como não houvesse já poesia para ser dita, fui convidado para integrar a sua irmandade, restritíssima!, devendo então escrever um qualquer dito, ou escrito, que seria colocado na porta do seu quarto. Perante a insistência dos meus débeis protestos, pois que esvaziasse o espírito de pré-conceitos, que me permitisse a sublimação verbal, que francamente me perscrutasse como narciso... e eu fi-lo. No placard, ainda hoje, ficou o registo, a tinta verde, “Incubus est surréaliste chez les femmes”.
Tenho um gosto especial em relembrar esta história, uma espécie de fait-divers, pois acalenta-me frequentemente a esperança de que a vida pode ainda ser resgatada das entranhas vomitadas da racionalidade e que pode francamente ser o sonho sonhado de pelúcia e aragem verde, que pode ver em mãos marinheiras o lastro poético da humanidade, que crianças pedirão para ser declamado...
Bem sei, o propósito deste meu esforço de escrita, de um exercício de estilo, subversivo, é certo, mas conceptual, profundo e desinteressado pelas questões que se seguirão, tem que ver com a minha própria implicação, a poesia, e com uma determinada justificação (?) lectiva.
Qual antecede qual? Em verdade, qual interessa para a defesa das aulas em que estarei presente? Não sabendo responder objectivamente às próprias questões que (me) coloco – nem sabendo tampouco se algum dia poderei respondê-las – alistar-me-ei às investigações canídeas de Kafka e prosseguirei, assim, à procura de O osso para lhe poder chupar o tutano e, daquela forma, encerrar em mim as chaves que me permitam abrir as portas de todo o conhecimento humano.
Só o meu actual cansaço faz com que redija assim, mas tenho uma necessidade absoluta de me situar num espaço e num tempo que não são os meus; ou seja, procuro a absolvição de uma dimensão educativa que me transcende e da qual naturalmente desconfio. Muito caminho foi já traçado, muitos atalhos foram percorridos com os alunos até si; pelos “meus” alunos fiz esse enorme esforço de compreensão e de aplicação. (A impressão com que fico, neste momento de silepses e analepse da narrativa em que me escolheram para protagonista, é a de que a demência se apresentará breve.)
Claro que, como se compreende, só quando fui e estive convicto do que dizia e do que juntos dos alunos promovia pude aferir da construção dos seus sentidos cognitivos/emotivos – porque estava lá ou porque tinha preparado uma ficha de avaliação escrita.
Atente-se no que escrevo: convicção. A convicção, quando convidada a aparecer, muito bem vestida, na sala de aula pode criar os tais mecanismos facilitadores de aprendizagem de que os programas tanto gostam de apelar. Claro que a preocupação primeira e última são os alunos que se nos perfilam, mas a convicção permite-nos o gosto de transmitir/criar conhecimentos; desde logo se afasta a hipocrisia de um discurso que não é nosso, mas que o tentamos tornar sustentável.
Será legítimo perguntar, portanto, após estas breves considerações, de que forma as aulas foram pensadas para os alunos, e, já agora, o que vai ser ensinado.
Antes porém... os programas. Os programas de francês para o Ensino Secundário contemplam, nos seus objectivos gerais, o aprofundamento de «valores, atitudes e práticas que preparem intelectual e afectivamente os jovens para o desempenho consciente dos seus papéis numa sociedade democrática». Mais à frente, tentando pormenorizar, num subtítulo pomposo, mas ambíguo e vazio – “Domínio das aquisições fundamentais para o desempenho de papéis socialmente úteis” – pode também ler-se que compete ao referido grau de ensino “facultar aos jovens conhecimentos necessários à compreensão das manifestações estéticas e culturais e possibilitar o aperfeiçoamento da expressão artística”.
Ridicularizando o “aperfeiçoamento da expressão artística” (embora polulem artistas no nosso sistema educativo...), todas as citações defendem a acção performativa que pretendo para as aulas de regência.
Por ora, parece não haver dúvida do quão penso ser importante o modo lírico e de que forma estou convicto relativamente a um discurso que já tomo (sempre tomei, aliás) como meu. Mas este, nomeadamente, a poesia (melhor seria dizer estética ou ética), não se confina unicamente a uma postura única de literariedade. Não se fecha em si próprio, nem implica o fechamento estético de quem, um dia, consigo passeou nos boulevards parisienses.
Manifestações estéticas, seguramente, mas em que medida se podem incluir as culturais e sociais?
A escolha de um poeta como Éluard não foi ingénua. Seguramente, importará ver na sua poesia (alguns poemas representativos, embora não os mais simbólicos) as coordenadas de uma certa feminização, estabelecer um determinado percurso semântico, ter olhos férteis para ver nele a ligação a um modelo renascentista, pese embora a marginalidade da sua opção estética.
Mas Éluard não existe fora da história. Desde 1895, ano do seu nascimento, até ao de 1952 a própria história se encarregou de transformar a humanidade; não nos podemos esquecer que a própria vida de Éluard está ligada, primeiro, ao desabar do edifício humano e, posteriormente, à fé, esperança e caridade. As duas grandes guerras, participou na primeira, intervaladas pela Guerra Civil Espanhola e secundadas por tantos conflitos sociais: em Itália, onde fez a apologia da sua ligação comunista, e na guerra civil grega, onde foi mediador.
O próprio movimento surrealista foi ao mesmo tempo carrasco e fiel servidor de uma causa alheia; foi também, sem o querer, por certo, tão contraditório como os homens que o edificaram: pretendendo ser uma ferramenta de libertação para as massas, nunca se lembrariam que elas não sabiam ler e estavam mais ocupadas em sobreviver do que especular e inocular novas estéticas. Homens de acção, claro!, activistas políticos e militantes, só um deles conseguiu unir-se completamente à natureza: Paul Éluard. Mais até do que uma literatura feminina, há uma criação de uma emoção feminina perante a natureza; mais do que este porto de abrigo final – de que Nusch é apenas o exemplo mais perfeito -, a poesia de Éluard libertou-se das amarras inconsequentes de um surrealismo dadaizante e cantou como poucos a cumplicidade e a solidariedade humanas. Liberdade, claro.
Ora, serve Éluard, finalmente, para, ao estudar-se a sua poesia, elucidar os alunos sobre um determinado período histórico-literário, cuja importância ainda hoje prevalece. Não importa tanto os mecanismos reais do pensamento, mas o pensamento que se teve para impulsionar, arrancar, a humanidade do estertor guerreiro em que se encontrava.
Serve Éluard, sobretudo, para transmitir uma determinada emotividade poética (humana?) junto dos nossos alunos. Serve para provar, ainda, que há homens que merecem o respeito dos seus pares e que os aceitam na resolução dos seus problemas. Serve ainda para provar que a amizade não conhece limites (Éluard e Marx Ernst foram oponentes durante a primeira grande guerra, na mesma batalha...).
Nestes sentidos, Éluard, leiam-se os textos anexos, é um homem do renascimento.
As aulas que idealizei, como não poderia deixar de ser, terão um cheirinho subversivo; é compreensível, agora, o lírico primeiro parágrafo: há vícios que me habitam, e ler Éluard, até como exemplo surrealista e fonte poética/ética, é um deles.
Vai uma conferência? Claro que sim! Ler poesia como se de um público verdadeiramente interessado se tratasse é o propósito inicial. Ousarei permitir-me representar Éluard, esperando responder a questões de índole bio-bibliográficas (aproveitando, como se compreende, para, falando de mim, Éluard, referir-me ao próprio movimento surrealista e às coordenadas já enunciadas).
Ler poesia, no entanto, está para além do propósito, já normal em mim, de sensibilizar almas adolescentes (leia-se: criar apetência pela estética ); permite ainda, ou sobretudo, resgatar uma determinada gramática receptiva, de que só a macroestrutura e a superestrutura emergirão durante as aulas. Quanto à primeira, pode ser vista já na primeira aula. Para além da conferência, os alunos devem ler um texto crítico e confrontar as suas principais coordenadas com a poética (da última fase, digamos assim) de Éluard; a segunda, porque será necessário, a inversão é voluntária, integrar o autor e a sua obra numa determinada corrente estética.
A integração de que falo deverá prever, para além da aparência lectiva, ou performativa, a construção de um caminho para a autonomia: trata-se de investigar individualmente, mas não solitariamente. O que se pretende? Que os alunos possam saber identificar o conceito de surrealismo, as suas delimitações estéticas, os elementos constitutivos, vindos ou não do dadaísmo, o principal mecanismo de aplicação (escrita automática, cadavres exquis), etc... Claro que questões, referidas de modo abrangente, serão propostas aos alunos. De qualquer modo, importa referir que lhes serão facultados livros e mesmo um computador portátil (páginas previamente gravadas da Internet) para que possam proceder à sua pesquisa. Essa criação da autonomia deverá permitir-lhes a exposição dos seus argumentos perante os restantes colegas.
Acredito plenamente que se seguir este caminho poderei legitimar em aula os objectivos gerais consignados em aula e, mesmo sabendo que não cumpro deliberadamente os quatro domínios da praxe exaustivamente, contribuo seguramente para a promoção da meta-cognição (reconheço que estava a demorar: permito a redução eidética husserliana...) de cada um dos discentes presentes.
Acredito também, mesmo se a aparência mostra o inverso, que há caminhos que apostam claramente na centração da aula no aluno. Competir-me-á dosear os papéis e saber claramente indicar tarefas.